Será que ele, disfarçadamente, já habita entre nós?
Iniciamos por sugerir a
leitura atenta de uma obra de George Orwell que, embora escrita em 1945 e
publicada pela primeira vez em 1946, tendo por escopo uma antevisão do mundo
político em 1984, apresenta-se como um tema merecedor de ser apreciado e
considerado nos dias atuais.
É imprescindível difundir a
conveniência dessa leitura, para que cada vez mais cidadãos fiquem alerta e
cientes da desgraça que se nos avizinha e procurem, todos juntos,
embarreirá-la.
* * *
Sinópse - A obra de Orwell intitulada de “1984"
não é apenas mais um livro sobre política, mas uma metáfora do mundo que
estamos inexoravelmente construindo.
Invasão de privacidade, avanços
tecnológicos que propiciam o controle total dos indivíduos, destruição ou
manipulação da memória histórica dos povos e guerras para assegurar a paz já
fazem parte da realidade.
Se essa realidade caminhar para
o cenário antevisto em 1984, o indivíduo não terá qualquer defesa. Aí reside a
importância de se ler Orwell, porque seus escritos são capazes de alertar as
gerações presentes e futuras do perigo que correm e de mobilizá-las pela
humanização do mundo.
* * *
Haveremos de perquirir: Para onde
caminhamos e se é isso que queremos para as nossas vidas e a dos nossos descendentes?
Será que já não estamos, em parte, vivendo sob a disfarçada égide desse domínio
estranho e abominável?
Pelo estado atual das coisas
e pela desgraça futura, todos nós somos e seremos responsáveis. Só há um
caminho capaz de nos afastar desse inferno. O caminho do exercício pleno
e destemido da cidadania e da democracia.
Atentem para que um escorço
histórico não longínquo nos leva a lembrar o sofrimento do povo soviético a
partir da revolução comunista com o desmedido desempenho da KGB (Komitet Gosudarstvennoi
Bezopasnosti - Comité de
Segurança do Estado), também, o do povo alemão durante o Regime Nazista com
os métodos usados pela GESTAPO (Geheime Staatspolizei – Polícia Secreta
do Estado) e, ainda, dos portugueses durante a Ditadura Salazarista
através das odiosas ações da PIDE (Polícia
Internacional de Defesa de Estado).
As menções feitas a esses
três casos, não são excludentes de muitos outros. Há os que praticaram e ainda praticam,
até os dias atuais, o império da vontade de, apenas, um grupo ou de um elemento
dominante, que outorga todos os direitos aos que a ele se juntam, relegando aos
que não o apoiam, a ausência de qualquer direito que os afaste da reclusão, da
tortura e/ou da eliminação, para o bem do regime.
No Brasil, desprezando
tempos anteriores, recordemos o Golpe Militar de 1964 e a implantação de Regime
de Exceção, quando tudo se tornou possível em nome da Segurança Nacional. A
invasão de privacidade, mesmo com recursos tecnológicos ainda não tão evoluídos
como agora, tornou-se uma tônica no controle dos indivíduos, espalhando o pavor.
As empresas exploradoras dos
sistemas telefônicos foram “convidadas
ou aconselhadas” a desenvolver redes especiais para atender aos seus
sistemas fechados de observação/operação (DOI-CODI) e, bem assim, a promover as
interceptações telefônicas que lhes fossem determinadas, transferindo os dados
fonados para as suas instalações centrais de gravações.
Ninguém estava a salvo,
pois, tudo se permitia às forças militares que, no poder, destinavam boa parte do
seu tempo e dos seus recursos à caça implacável dos chamados “subversivos”, coadjuvadas por
órgãos policialescos e inescrupulosos como o DOI (Destacamento de Operações de
Informações), o CODI (Centro de Operações de Defesa Interna), o SNI (Serviço
Nacional de Informações) e DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) criado
em 1924 na ditadura Vargas – Estado Novo - para controlar e reprimir movimentos
políticos e sociais contrários ao regime, órgão que adquiriu importância
destacada nos chamados “Anos de Chumbo”.
Nenhuma lei regulava essa
matéria, exceção feita à Constituição Federal que implantava, como cláusula
pétrea, o princípio da inviolabilidade da correspondência e das comunicações
telefônicas e telegráficas. Mas..., qual o poder da Constituição face ao Regime
de Exceção? Se a Constituição estava atrapalhando, porque não afastá-la ou
suspendê-la? E, assim, baseados no princípio então vigente do – “nós podemos tudo” – a Constituição
de 1946 foi suspensa pelo Ato Institucional nº 5, em 1968.
Assim, o exercício do poder
se tornou mais confortável para aqueles que o detiveram até o fim do Regime de
Exceção em 1985. Mas, o império da Democracia e da Cidadania da forma que deve
ser exercido, não tardou a ser menosprezado na chamada Constituição Cidadã de
1988, em que pese o quanto discursado pelo Dr. Ulisses Guimarães, Presidente da
Assembleia Nacional Constituinte, em 5 de outubro de 1988:
“É a Constituição Coragem.
Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu,
destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei.
A Constituição durará com a democracia e só
com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a
justiça."
É
que a Constituição de 1988, no art. 5º, inciso XII, mesmo como exceção, em
último caso e para fins de investigação ou instrução processual penal, na
dependência de ordem judicial, legitimou a violação das correspondências, das
comunicações telegráficas, telefônicas e de dados e, consequentemente, da privacidade
dos cidadãos.
XII – é inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal
ou instrução processual penal. (grifos nossos)
Tudo
seria tolerável se não se passasse a entender, propositadamente, de modo
diverso da interpretação vernacular, certos termos utilizados na redação desse
dispositivo constitucional pétreo, como segue.
A
expressão NO ÚLTIMO CASO, passou a ser entendida como EM QUALQUER CASO e
a que menciona PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO, passou a ser utilizada como PARA QUALQUER FIM e,
ainda, de modo espetaculoso, a expressão PARA FINS DE INSTRUÇÃO
PROCESSUAL PENAL ficou
sendo entendida como PARA FINS DE PROVA EM AÇÃO CRIMINAL.
Em
razão disso podemos dizer que, hoje, muito mais de 5.000.000 de cidadãos
brasileiros estão tendo as suas privacidades e intimidades devassadas por
escutas ou grampos telefônicos de duração infinita, isso com autorização
judicial expedida, muita vez, pela incúria de alguns Magistrados inconsequentes,
inescrupulosos e tendenciosos.
Não
se combate a criminalidade com a deturpação, em nome da justiça, dos princípios
constitucionais pétreos, ou mesmo, das normas infraconstitucionais, como no
caso da Lei nº 9.296, de 1996.
Note-se
que já na cabeça do art. 1º dessa Lei está estampada a violação de preceito
constitucional, quando assim expressa:
Art. 1º A interceptação de comunicações
telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal
e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de
ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
(grifo
nosso)
Ai
está, pois, uma clara deturpação do texto constitucional, expressa em texto
infraconstitucional, conforme antes mencionada nestes comentários. Será que por
mero engano redacional ou, o que parece política e juridicamente óbvio, com o
propósito de restringir direitos fundamentais garantidos na carta magna? Será
que o que você diz pode ser prova de que você fez, mesmo sem ter feito?
Prosseguindo,
examinemos, ainda nesse artigo, se esse tal segredo de justiça ainda
está ou, em algum tempo já esteve, vigente? Não é o que presenciamos a cada dia
na imprensa falada, escrita, televisionada e telematizada que, até transmitem
as gravações da própria voz dos interceptados, quando a Lei determina que de tais
gravações se realizem as transcrições.
Art. 6°
Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de
interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua
realização.
§ 1° No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação
interceptada, será determinada a sua transcrição. (grifo nosso)
Mais
uma vez a Lei em tela, no seu art. 8º, deixa claro que o segredo de
justiça deva ser preservado para proteger o interceptado que, no caso,
é apenas investigado.
Art. 8° A interceptação de comunicação
telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos
autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o
sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. (grifo nosso)
Também
se deve questionar se os Magistrados, ao determinarem uma medida
de exceção como tal, o estão
fazendo, efetivamente, de modo consciente, consequente e isento, cumprindo os
ditames e a mens legis da carta magna, ou, no mínimo, das
disposições da lei in comento.
Art. 2°
Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer
qualquer das seguintes hipóteses:
I
- não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
III
- o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de
detenção.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação
objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos
investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.
De referência a duração
dessas interceptações, o descalabro e tão evidente que clama pela
interveniência dos Tribunais superiores e pelo Conselho Nacional de Justiça,
pois, as decisões judiciais concessivas dessa medida invasiva tem como letra
morta o art. 5º da Lei.
Art. 5° A decisão será fundamentada,
sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não
poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez
comprovada a indispensabilidade do meio de prova. (grifo nosso)
Pois é, os comentários de
natureza fático-jurídica que nos permitimos aqui fazer, certamente poderiam se
estender por caminhos mais densos e longos, mas..., se afastariam da nossa
pretensão de demonstrar a visão política atual e as desastrosa práticas dos nossos dias que até parecem
submissas a conselhos e teorias “princepescas” tendentes ao alcance da antevisão de Orwell.
Embora pareça, não estamos
sendo nem radicais, nem exagerados, mas sim, conscientes e pragmáticos,
mormente quando observamos que cada interceptação requisitada e concedida não
atenta, apenas, contra a privacidade do cidadão sob investigação, mas sim,
contra a privacidade e intimidade de tantos quantos com ele se comunicam.
Observem, ainda, que, se em alguma das interlocuções surgir uma palavra que os “interpretes” considerem como
suspeita, no confronto com um “dicionário”
só deles, esse interlocutor terá deferida, também, a interceptação das
suas chamadas, quebrando, por igual, a privacidade e intimidade daqueles que
com ele se comunicarem.
Aqueles que já leram algo
sobre fissão nuclear, por
certo entenderão que, mutatis mutandi,
estamos diante de um quadro de reação
em cadeia capaz de promover estragos irreparáveis, que podem e devem
ser evitados, se impedirmos que alcancem a massa crítica, seja no conceito da física nuclear, seja
no conceito sociológico.
Salvador/Bahia, junho de 2012
A. Magalhães
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